O futuro dos argentinos
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 09/07/1888.
Quando hoje contemplo o rápido progresso da nação argentina,
recordo-me sempre da primeira e única vez que vi o Dr. Sarmiento, presidente
que sucedeu ao General Mitre no governo da República.
Foi em 1868. Estávamos alguns amigos no Club Fluminense, Praça da Constituição, casa onde é hoje a Secretaria do Império.
Eram nove horas da noite. Vimos entrar na sala do chá um homem que ali se
hospedara na véspera. Não era moço; olhos grandes e inteligentes, barba
raspada, um tanto cheio. Demorou-se pouco tempo; de quando em quando, olhava
para nós, que o examinávamos também, sem saber quem era. Era justamente o Dr.
Sarmiento, vinha dos Estados Unidos, onde representava a Confederação
Argentina, e donde saíra porque acabava de ser eleito presidente da República.
Tinha estado com o Imperador, e vinha de uma sessão científica. Dois ou três
dias depois, seguiu para Buenos Aires.
A impressão que nos deixara esse homem foi, em verdade,
profunda. Naquela visão rápida do presidente eleito pode-se dizer que nos
aparecia o futuro da nação argentina.
Com efeito, uma nação abafada pelo despotismo, sangrada
pelas revoluções, na qual o poder não decorria mais que da força vencedora e da
vontade pessoal, apresentava este espetáculo interessante: um general patriota,
que alguns anos antes, após uma revolução e uma batalha decisiva, fora elevado
ao poder e fundara a liberdade constitucional, ia entregar tranqüilamente as
rédeas do Estado, não a outro general triunfante, depois de nova revolução, mas
a um simples legista, ausente da pátria, eleito livremente por seus
concidadãos. Era evidente que esse povo, apesar da escola em que aprendera,
tinha a aptidão da liberdade; era claro também, que os seus homens públicos, em
meio das competências que os separavam, e porventura ainda os separam, sabiam
unir-se para um fim comum e superior.
Sarmiento chegou a Buenos Aires; o General Mitre
entregou-lhe o poder, tal qual o constituíra e preservara da violência e do
desânimo. Então os amigos deste claro e subido espírito lembraram-se (se a
minha reminiscência é exata) de lhe dar uma prova de afeto e admiração, um como
prêmio da sua lealdade política, e criaram-lhe um jornal, essa mesma Nación,
que é hoje uma das primeiras folhas da América do Sul. Fato não menos
expressivo que o outro.
Vinte anos depois, a nação argentina chegou ao ponto em
que se acha, próspera, rica, pacífica, naturalmente ambiciosa de progresso e
esplendor. Esqueceu a opressão, desaprendeu a caudilhagem; conhece os
benefícios da liberdade e da ordem. Vinte anos apenas; digamos vinte e oito,
porque a campanha de Mitre foi o primeiro passo dessa marcha vitoriosa.
Agora, no dia em que os argentinos celebram a sua festa
constitucional, lembro-me daqueles tempos, e comparo-os com estes,
quando, em vez de soldados que os vão auxiliar a derrocar uma tirania
odiosa, mandamos-lhe uma simples comissão de jornalistas, uma embaixada da
opinião à opinião; tão confiados somos de que não há já entre nós melhor campo
de combate. Oxalá caminhem sempre o Império e a República, de mãos dadas,
prósperos e amigos.